segunda-feira, 25 de julho de 2011

XCerrado - O Assentamento do Mosquito

Estávamos no km 75 e buscávamos a próxima cidade no mapa. Ainda era cedo e o nosso terceiro dia de voo estava rendendo! "Arraial da alguma coisa", reportei no radio. "Mas são 25km pra frente", o Gauchito respondeu. "Então, 100km de novo! Bora!!" gritei empolgado. À nossa frente, a maior roubada que já vi em voo. Pareciam ser 25km de "nada"... Uma terra com escassez de casas e nada à vista - literalmente nada, nem a cidade-destino.

"Arraial da Barra é o nome da cidade", gritou o Raffa que vinha logo atrás, e tocamos. O voo da terça-feira não estava fácil. Por 2 vezes, e em momentos diferentes, já tínhamos ficado muito baixo - coisa de 50 metros do chão. O cerrado estava colaborando conosco, mas entrar na roubada em um dia com aquela inconsistência não foi - confesso - a melhor decisão que já tomei na vida.

Lá pelo km 80 havia um asfalto que ligava nada a coisa nenhuma, mas de certa forma ele nos passou a segurança que faltava para seguirmos viagem... O problema é que depois do asfalto uma sombra tomava conta do lugar, que também era muito verde. A paisagem aqui era bem diferente do cerrado que estávamos habituados... Um rio cortava o local de norte a sul, e isso tornava toda a vegetação muito verde e arborizada... As opções de pouso diminuíram, e a união fez a força: a sombra enorme, o verde e a falta de pouso formaram a roubada mais medonha que já passei!

Aliás, que não passei. O Gauchito passou alto por ali e foi-se embora, tal como o Raffa. Eu não tive a mesma "sorte", e fiquei logo depois do rio - no melhor pouso que encontrei, e do lado de dois carros estacionados. Eram 16h30, e ali começaria uma loonga história... Deveras, não lembro de ter me "divertido" tanto quanto neste episódio...

Comecei a caminhar quando um carro passou por mim. O carro estava cheio, mas ele aceitou me dar uma carona até a cooperativa. "Levar até Arraial não vai te refrescar nada, lá também não pega celular e não chega asfalto não! Ali na cooperativa já pega celular, acho que está bom!".

A cooperativa, depois fui saber, foi o início da reforma agrária no Brasil. Atualmente estava abandonada, tendo apenas o mercadinho do João funcionando e a casa própria dele. Escola, Igreja e mais duas construções completamente abandonadas, jogadas às traças... "Eles vieram, construíram tudo pra gente, mas não ensinaram a gente a administrar. Daí deu tudo errado mesmo", me explicou depois um dos caboclos que estavam ali...

Bem, cheguei e o celular não pegava. O João logo se prontificou: "Pode usar o meu, tem antena ali em casa e pega bem!". E lá fui eu usar. Peguei a posição do GPS e fui enviar uma mensagem, já que o meu resgate era a Margareth (celular do Rio Grande do Sul) e o interurbano sairia injustamente caro para o pessoal ali. "Falha no envio: sem crédito para enviar a mensagem", acusou o celular dele. Bacana... Tentei ligar a cobrar para o pessoal, também sem sucesso... Por fim, liguei pra casa dos meus pais, em Curitiba, a cobrar. Pedi à minha mãe que anotasse as coordenadas de GPS e ligasse para a Margareth, mãe do Gauchito, para passá-las. Liguei 10 minutos depois e estava tudo certo, coordenadas enviadas.

Aí já eram 17h30, e eu sentei aliviado no mercadinho para tomar alguma coisa com o pessoal. Ouvi muitas histórias ali sobre a região, sobre o assentamento do Mosquito e todo o resto. Também ouvi história sobre o Arraial da Barra, que na verdade era Buenolândia, em homenagem ao desbravador de Goiás que tentara fazer dali a primeira cidade do estado. Sem sucesso, acabou se definindo Goiás Velha como a principal cidade histórica da região...

"Aceita um biscoito? Está é a comida mais típica da região, toda mulher prendada aqui faz!", me ofereceu empolgado o Pedro, que tomava uma cerveja junto com o Maguila ali no mercadinho... O Pedro parecia ser um cara "estudado", era paulista mas trocara a vida em SP pela vida em Goiás... Foi através dele que fiquei sabendo de várias questões, e que tive uma explanação do histórico do assentamento do Mosquito e da região.

A rosquinha, de fato, era boa. Pedi a receita, mas levei uma invertida: "num dianta eu te passar não! só quem é daqui acerta o ponto...", o Pedro comentou. "Mas vai queijo que vocês chama de queijo de minas (e me explicou como se faz o queijo), polvilho que a gente chama de polvilho azedo (e me explicou como se faz o polvilho azedo) e ovo.", completou o Maguila...

Maguila era um cara mais simples; parecia não ter estudo, mas parecia entender muito de tudo que ele podia. De fato, não falava bonito e a aparência era de "jagunço", mas ele tinha vários negócios na fazenda dele... Queijo, leite, gado...

Mas passou uma hora e eu não tinha nem notícias deles. A luz começou a baixar, os morcegos começaram a voar em volta de nós, e nada de ninguém dar sinal de vida... O João mandou a mulher dele ir para o culto sozinho: não poderia me deixar lá abandonado!

E foi do Maguila a idéia de irmos até a casa do Valdivino: "O celular dele é Claro, você pode colocar seu chip e tentar ligar para os seus amigos.". No caminho, ainda tentamos um "hot spot" de celulares Claro. "O pessoal que tem claro, às vezes, consegue falar daqui! Mas tem que subir nesta pedra aqui", falou o Maguila apontando uma pedra de 10cm de altura. Subi nela, e nada de sinal.

A caminhada continuou e foram 20 minutos bem caminhados. Imagine a cena: era um breu total, sem o menor sinal de luz elétrica em volta. Uma estrada ruim, por onde carros não passaríam, e apenas meu celular sendo usado como lanterna. Minhas coisas, inclusive carteira, ficaram no mercadinho do João, e eu estava caminhando para outro "nada" porque, em teoria, um rapaz tinha um celular Claro com antena de ganho. Por um breve momento fiquei até com receio...

Mas chegamos na porteira do Valdivino. "Daí a gente desce um pouco e eu chamo o Valdivino, porque os cachorros dele são bravos e ficam soltos no terreno.". Recuei. "Eita, agora fiquei com medo!", disse. "Nãão, pode ficar tranquilo"... E seguimos, sem muita tranquilidade mas sem muita opção também...

Avistamos finalmente a casa e o Maguila começou a chamar o Valdivino. "Ô Valdivino", gritava. E os cachorros gritavam do outro lado... E nada do homem aparecer... Até que o filho dele apareceu prendendo os cachorros... Com certo alívio, atravessamos mais um pequeno portão e chegamos no terreno da casa.

Estirado no quintal dos cachorros havia um crânio de boi, com sangue fresco ainda. Mais à frente, alguns ossos enormes... O cenário era, digamos, intrigante... Demos a volta na casa e o Valdivino, um rapaz de 40 e poucos anos, carneava um boi junto à família. "Programa de terça-feira", pensei... Enquanto ele tirava o sebo da carne, o filho brincava com os ossos, a mãe operava a moedora e a filha de uns 4 anos alcançava os bifes para a mãe. Família unida...

Ofereceram-me café. Na verdade, eu senti que todos estavam muito dispostos a ajudar com o que fosse... O filho do Valdivino me conduziu até dentro da casa, onde trocamos os chips e tentei contado com o pessoal. Eram 19h40, e eles já deviam estar no meio da roubada também - pois o celular deles é que não tinha sinal agora...

Desanimado, voltei à garagem onde o boi estava virando carne moída... "Senta aí, quer um café? Se você quiser, pode dormir aqui, tem cama aí!", exclamou o Valdivino. Eu, até agora, não tenho certeza se a sensação que senti ao ouvir aquilo era de alívio ou de vontade de dar risada mesmo. Qualquer que fosse, eu agradeci mas recusei! rs

Ficamos uns 10 minutos ali, e voltamos. "Pode ser que eles já estejam lá!", comentamos enquanto saíamos do terreno...

Assim que voltamos à cooperativa, meu rádio soou: "Henrique, Henrique, cadê você?", perguntava a Margareth. Como o radio que usamos no carro é mais forte, eu conseguia copiá-los mas não conseguia respondê-los. Aqui a ansiedade bateu forte. Já passava das 20h...

E as idéias começaram a surgir. "Sobe na cerca e tenta contato!", um disse. Subi na cerca, e nada. Ouvia, mas não respondia. "Vão até a igreja, que é mais alta!". A igreja, por sinal, era uma abandonada; seria um excelente cenário para a continuação da Bruxa de Blair, sem dúvidas!

"Bom, tem a caixa d'água!", argumentou o João. Quando eu olhei para ela, e avistei uma escadaria ao lado dela, pareceu que a vi iluminada e com trombetas ao redor. Era a salvação, eu subiria, conseguiria contato e seria aquela cena divertida!

Mas chegamos em baixo dela e o Maguila logo avisou: "não sobe muito, tem uns marinbondo ali no final da escada.". Bacana, hein?! Subi alguns degraus sem muita expectativa, e de fato não obtive retorno no radio. O João gritou lá do mercado: "Pode ficar tranquilo, queimamos tudo ontem! Está limpo!". E aí eu subi o primeiro lance de escadas...

E um receio bateu novamente: "e se essa escadaria cai?!". Não quis subir mais (até porque o segundo lance estava cheio de teias de aranha), e eu desci desanimado... Continuava copiando eles no rádio, mas nada de conseguir responder...

Isso se passou por cerca de 20 minutos, até que...

"Henrique, copia Guga?"
"Alo, na escuta?", respondi sem expectativas
"Alo, alo", respondeu o Gauchito. Hesitei, não sabia se era uma resposta ao meu contato.
"Alo, gauchito, na escuta?"
"Sim, na escuta!"
"Caaaaaaaaaara, não acredito que vocês me encontraram! Finalmente!!!", comemorava eu no radio. O pessoal ao redor foi contagiado e aquilo foi uma injeção de ânimo. Eles estavam pertíssimo.

Do outro lado, a reação não foi diferente. "Quem não acredita nisso somos nós!!!", falou o Gauchito... E o carro chegou, e aquilo era inacreditável!

Entrei no carro dizendo "vocês não acreditam na roubada que eu me enfiei!", e logo fui retrucado pelo João: "Acreditamos sim!" rs... E demos risada, e seguimos viagem...

O pessoal do resgate realmente foi muito legal, e sei que devo muito à Margareth e ao resto do povo por isso. Foi um total de 4h30 voando, e 4h na roubada. Quase "um pra um" rs...

Na volta, ainda tivemos um refresco aos olhos: fomos parar em Goiás Velha, uma cidade inteira tombada pelo patrimônio histórico. As ruas de pedra e casas sem quintal formavam um cenário belíssimo, que de certa forma refrescou tudo aquilo que havíamos passado havia pouco...

"E o voo? Bateu seu recorde de volta, pelo menos?", perguntou o Gauchito.
"Não bati nem 100km", respondi... "Deu 99,9km!".

Abraços, e ponto.

2 comentários:

  1. Poderia ter corrido com a vela no chão mais uns 100m :-)

    Abraços!
    Rodrigo Stulzer
    transpirando.com

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  2. Adoro tuas aventuras! Sou sua fã!!! ;-)
    Beijinho!

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